Vítor Sá Machado, nasceu em Lisboa a 27 de Setembro de 1947. Fez o Curso de Arte, Decoração e Design no IADE. Trabalhou como designer gráfico para ateliers de arquitectura, como ilustrador e caricaturista para várias publicações nacionais. Criou adereços e cenários para RTP, SIC e TVM (Moçambique). Destaca-se o seu trabalho no teatro, na criação de adereços, cenários e máscaras para diversas companhias como a Barraca, Teatroesfera, Teatro Variedades, Teatro Acert, Teatro Oficina e Teatro Nacional D. Maria II. Participou em muitas exposições colectivas e individuais desde 1985, com escultura, cerâmica, objectos, pintura, aguarela e caricatura. Fez a primeira exposição de Máscaras em 2004 no Teatro Municipal da Guarda.
Reside em Escalhão (Beira Alta), onde se dedica às suas esculturas e outros objectos, a aguarelas e outras pinturas, continuando a trabalhar para teatro e televisão.
Beco da Rua do Vaz, nº6
6440– 072 Escalhão
Portugal

CORO de DIABOS
O diabo assumiu quase sempre a personificação do mal na simbologia cristã. A ameaça constante da sua presença, o medo que provocava nas gentes, fizeram com que muitos sejam os nomes que a tal criatura foram dados, ao longo do tempo e em muitos lugares, pela tradição popular: Diabo, Demo ou Demónio, Satã ou Satanás, Belzebu, Mafarrico, Lúcifer, Chifrudo, Pé-de-bode e muitos mais, que serão desconhecidos para a maioria de nós. Mas, se ao longo da história do cristianismo, o diabo foi sempre apresentado como responsável, ou como inspirador sinistro dos responsáveis, de todo o mal que aconteceu aos homens, de todas as tragédias e desgraças que a humanidade sofreu, e se muitos homens e mulheres, acusados de se lhe renderem, sofreram na pele castigos de uma crueldade indescritível, onde a morte seria o menor dos males, houve sempre também nestas criaturas uma certa dose de fascínio irresistível, que lhes era dado, quer pelo seu poder quase ilimitado, quer por parecerem ser capazes de nos abrir janelas para mundos fantásticos, mais atraentes do que aqueles que a visão canónica e estreita da igreja oferecia. Não por acaso, o diabo é personagem central de tantas obras literárias, onde o lado de fascínio e de sedução do mafarrico se mesclam com o mal e a perdição do Satanás.
Mas o diabo, na mitologia cristã, era um anjo que se rebelou contra Deus e contra os anjos fiéis, um anjo que quis libertar-se do jugo castrador do seu criador. Por isso, os diabos e os anjos representam nessa mitologia as forças do mal e as forças do bem, tomando como referência um mundo celestial/infernal, um mundo a preto e branco, onde se desenhasse uma fronteira clara que separasse os dois reinos. Mas, sabemos bem, que tal mundo ideal não existe e que o bem e o mal muitas vezes se encontram, se confundem, se misturam e que a história transforma muitas vezes figuras, que tinham sido consideradas maléficas, em figuras bondosas e libertadoras. Realmente, a transformação do mundo pela procura de uma sociedade melhor, mais igual e mais justa, não pode ser feita apoiada apenas em figuras passivas, submissas, que nos incitam a respeitar o status-quo, que nos ordenam obedecer à ordem estabelecida, que nos incutem ao sofrimento na Terra, em nome da felicidade eterna. Realmente, só os diabos, ou figuras que incorporem algo da tradição diabólica, figuras dionisíacas, são capazes de nos inspirar para essa revolução.
Vemos o progresso como resultante de uma dialéctica constante entre essas duas forças que, ora nos impelem a obedecer e a respeitar, ora a desobedecer e a enfrentar o poder.
Vemos os diabos de Vítor Sá Machado como mafarricos e belzebus que nos inspiram nessa luta permanente.
Coro de Diabos, o título desta exposição de Vítor Sá Machado, ficará claro depois de vermos o pequeno filme Aurora onde precisamente dois coros, um de diabos outro de anjos, nos contam a história de uma mulher que, por se opor à lei dos homens, para defender a vida e a dignidade de outros homens, enfrentará a morte. Foram estas máscaras de Sá Machado que nos serviram de inspiração ao texto de Aurora, que por sua vez segue um percurso paralelo ao da Antígona de Sófocles.
Seremos capazes de descobrir nestes objectos intrigantes, construídos quase só com restos de sucata, que o artista procura, leva consigo e transforma, uma fusão equilibrada de influências tradicionais, africanas, clássicas e modernistas? Seremos capazes de descobrir nessas máscaras um lado porventura assustador e maléfico, que remete para as nossas memórias de infância, mas também outro inspirador e transformador, que o coro dos diabos em Aurora personifica?
São pesadas as máscaras de Vitor Sá Machado, o ferro com que o autor as forjou determina-lhes o peso. Não foram feitas para esconder a face em festas carnavalescas ou solsticiais. Foram feitas para nos despertar histórias, histórias cómicas ou trágicas, histórias de homens e de deuses, como a história de Aurora.
© Renato Roque, Julho 2019