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O Sardinheiro - conto transmontano

O sardinheiro

António Pinelo Tiza

            Há muitos anos, vivia o lavrador Albertino numa aldeia bragançana, nas fraldas da serra de Nogueira. Tinha um criado muito esquisito no que diz respeito às comidas. Recusava-se a comer qualquer coisa e só gostava de pratos com muita carne e de bom peixe, daquele que deita gordura no pão e que, só pelo cheiro, ficava logo com o apetite aguçado. De resto, batatas só se fossem bem acompanhadas com qualquer destes petiscos. Toucinho branco, nem pensar. Caldo de nabos, de abóbora ou de beterraba punha de lado e ficava à espera que a patroa lhe pusesse à frente qualquer uma daquelas comidas de que gostava. Por isso, Albertino, seu patrão, andava preocupado com Ricardo, o criado, porque julgava que ele andava mal alimentado e que, nessas condições, não tinha forças suficientes para trabalhar. Por outro lado, numa casa de lavradores, a base da alimentação é a carne de porco, o toucinho curado à lareira, nas noites frias de inverno, e que dava para todo o ano. Chouriças e salpicões só para dias especiais ou de trabalho muito duro no campo ou na eira, quando se faziam as malhas do cereal.

             Como não comia à mesa, Ricardo ia furtando, às escondidas, alguma peça do fumeiro que os patrões guardavam da despensa. Com o passar dos dias e meses, a patroa Delmina começava a dar pela falta de chouriças, salpicões e das compotas e marmelada. Perante esta situação, a patroa resolveu falar no assunto ao marido.

            - Albertino, o rapaz vai à despensa. Qualquer dia, estamos sem salpicões nem chouriças para a vindima. Despede esse ladrão – disse ela, revelando bastante perturbação.

            - Nesta altura da segada e da malha é que eu preciso dele. Como queres tu que o despeça? – respondeu Albertino – É que, assim de repente, não consigo arranjar mais nenhum. Eu vou tratar do assunto, à minha maneira.

            Estava-se, de facto, no verão, a época de maior trabalho na agricultura. Como não queria mandar embora o rapaz, pensou numa forma de lhe dar uma lição que resolvesse o problema das comidas; as que ele não comia, por ser esquisito, e as que furtava da despensa.

            Um dia de julho, depois de terminada a ceifa, o patrão avisou o criado que no dia seguinte iriam os dois trabalhar no batatal, cavá-lo, arrancar as ervas e prepará-lo para a rega. Era um trabalho que demorava o dia inteiro. Apesar disso, levou de merenda apenas metade de um pão. Embora fosse muito pão, não havia nada de carne de porco. O saco da merenda que Ricardo levava às costas pesava muito pouco, o que o deixou intrigado. Ao chegar ao batatal, deu uma espreitadela para dentro do saco e o que foi apenas um pedaço de pão. Voltando-se para o patrão, comentou:

            - Meu amo, acho que a senhora Delmina se esqueceu de meter mais alguma coisa no saco da merenda.

            - Fui eu que fiz a merenda e não me esqueci de nada. Daqui a um bocado, lá para o meio-dia, há de passar por aqui o sardinheiro. Compramos uma dúzia de sardinhas, acendemos uma boa fogueira e assamo-las nas brasas. Não gostas de sardinhas?

            - Sim, sim, gosto muito. Já me estão a saber… e o pão bem untado com a gordura da sardinha.

            Começaram o trabalho. A meio da manhã, Roberto começou a olhar, a cada passo, para o caminho por onde o sardinheiro devia passar, a cavalo do macho. Mas dele, nem sombra. Nada. Havia, isso sim, grupos de trabalhadores nas outras hortas, por aqui e por ali, fazendo os mais variados trabalhos agrícolas. Falavam de uns grupos para outros, para o que precisavam de gritar. De vez em quando, também se punham a cantar.

            - Patrão, a que hora chega o sardinheiro? – atreveu-se Ricardo a perguntar, já um tanto ansioso e já com a barriga a dar horas.

           - Não deve tardar, está quase na hora de prepararmos a comida – respondeu Albertino, sem deixar de trabalhar – vamos lá, temos de lhe dar para não voltarmos cá amanhã, não te parece?

            Lá se debruçou o rapaz sobre as batatas, cavando a terra com a sachola.

            - E de que lado vem?

            - Vem do lado da estação, que as caixas das sardinhas chegam no comboio. Foram pescadas esta noite. Estão muito fresquinhas.

            Continuaram o trabalho. De vez em quando, o rapaz levantava a cabeço, apoiava-se na enxada e olhava para o caminho, na direção da estação, por onde o sardinheiro viria. A verdade é que, pelo caminho não vinha ninguém nem a pé nem a cavalo.

            - Meu amo, o comboio já passou que eu bem o ouvi. Até foram dois, um em direção à cidade e outro em sentido contrário. O sardinheiro já tinha tempo de ter estar aqui.

            - Pois não deve tardar muito – respondeu Albertino, sem dar mais conversa. Estava muito concentrado no trabalho porque queria acabá-lo naquele mesmo dia, para não ter de voltar à horta.

            - Também me parece, – concordou Ricardo – já está na hora do almoço.

De facto, já era hora de almoçar. Então, todos aqueles camponeses que andavam nas terras e campos daquele sítio, pararam de trabalhar e sentaram-se à sombra dos freixos, negrilhos e salgueiros e puseram-se a comer a merenda. Tinham trabalhado no duro, debaixo de um sol intenso e de um calor abrasador. Por isso, mereciam bem aquela comida e aquele descanso, a meio de um dia de trabalho.

Também Ricardo tinha trabalhado muito, cavando a terra, fazendo os sulcos no batatal para facilitar a rega e arrancando as ervas daninhas. Por isso, também ele se sentia cansado, com calor e com fome. Transpirava por todos os poros e notava que as forças lhe iam faltando; já quase não conseguia levantar a enxada para a voltar a espetar na terra. Encheu-se de coragem e voltou a perguntar:

- Meu amo, o sardinheiro nunca mais chega.

- Há de estar mesmo a chegar, vais ver. O comboio já passou há bastante tempo. É porque se atrasou a vender sardinhas na aldeia – justificou o patrão.

- Se toda a gente quis comprar sardinhas é porque são boas. Se calhar já não deixaram nenhumas para nós.

- Ele traz sempre muito peixe, não te preocupes.

O rapaz olhou mais uma vez na direção do caminho por onde o sardinheiro devia chegar e nada; nem ele, nem o macho, nem o burro… nem caixas de sardinhas.

- Já tens fome, Ricardo?

- Sim, senhor. Tenho fome, mas acho que vale a pena esperar pelas sardinhas.

Trabalharam mais um bom bocado. Nessa altura já os outros trabalhadores tinham acabado de comer e dormiam a sesta, à sombra das árvores.

Por fim, morto de fome e de cansaço, o rapaz desabafou para o amo:

- Já não aguento mais, meu amo. Tenho muita fome e já me faltam as forças para sachar. Bem me haviam de saber as sardinhas, mas o sardinheiro não vem.

Patrão e criado ergueram-se, puseram os sachos ao ombro e foram para a sombra de um freixo, ao fundo da horta das batatas, perto de uma nascente de água fresca.

- Se o sardinheiro não vem – disse o patrão – o remédio é comermos o que trouxemos de casa. O pão que a tua patroa faz, com o centeio das nossas leiras da encosta da serra de Nogueira é o melhor do mundo.

O rapaz foi buscar uma cântara de água fresca. Bebeu uns bons goles e logo matou a sede. Depois, sentou-se numa pedra, em frente ao patrão e começou a comer como se fosse a última refeição da sua vida.

- Este pão que a patroa faz no forno lá de casa é mesmo o melhor do mundo.

- Pois é, – rematou o patrão Albertino – da próxima vez, trazemos o caldeiro que temos lá em casa, para cozermos umas batatas com toucinho, não te parece?

- Sim, sim, meu amo. Trazemos, que eu gosto muito de batatas cozidas e de toucinho.

Com esta lição de mestre, o criado Ricardo aprendeu a gostar de tudo e a comer o que lhe punham na mesa. Criou músculos e ganhou forças para trabalhar como um leão. E, sobretudo, ganhou a admiração e a estima de toda a gente na terra.

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