Rituais de mascarados nas festas de inverno
Texto do artigo
António A. Pinelo Tiza
O inverno chega a Trás-os-Montes quando o frio bate à porta e entra sem pedir licença. Novembro é o mês do começo da estação fria e escura. E aí estão as primeiras festas agrárias. Festas centradas na apanha da lenha, em tempo de homenagem aos mortos – os santos e os féis defuntos. São os prolegómenos das festas solsticiais, que vão acontecer em dezembro, do sol (o pagão e o cristão) e da fertilidade. Carregadas de autenticidade porque mantêm uma relação direta com as raízes e a alma profunda do povo.
No Nordeste Transmontano as mascaradas acontecem todas no inverno, a começar no último dia de Outubro para terminar no dia seguinte ao Carnaval. Trata-se de um inverno festivo que abrange dois momentos essenciais: o ‘ciclo dos doze dias’, compreendido entre o Natal e os Reis, durante o qual ocorrem as festas dos rapazes, coincidindo com o Natal, Santo Estêvão, Ano Novo e Reis; o segundo é o Carnaval, de sábado à Quarta-feira de Cinzas, o dia da Morte e dos diabos.
O mascarado
A máscara é um elemento partilhado por todas as culturas e civilizações e em todos os tempos da História. Talvez por isso, sempre se apresentou como detentora de funções primordiais, ou seja, como o adereço indispensável ao exercício dos rituais mágicos, permitindo que o mascarado assuma o protagonismo nas celebrações.
As antigas sociedades secretas masculinas usavam-nas nos seus ritos de iniciação e os povos arcaicos nos ritos de passagem, graças aos quais os jovens interagiam com o sobrenatural, trazendo os mortos de volta e acedendo, por seu intermédio, ao conhecimento e à sexualidade, tornando-se, assim, homens adultos e integrados, de pleno direito, na comunidade.
A antiguidade celta e romana será o tempo primordial que hoje todos os anos se recria, por ação destas personagens enigmáticas dos mascarados; o início da cristianização terá sido o tempo provatório da consolidação das celebrações, por via da insistente interdição pelas autoridades eclesiásticas, que conotava o mascarado com o Diabo. Por isso, os mascarados sempre estiveram afastados dos ritos cristãos; a bem dizer, diabolizados. Mas na sua origem, no contexto pagão e arcaico, eram personagens sagradas que executavam rituais sagrados; na verdade, só são “profanas” as atividades que não têm significado mítico e estas personagens celebram rituais profundamente impregnados de esoterismo. Ainda hoje, apesar da sua conotação com o Diabo que o povo lhe confere.
Ritos solsticiais
O povo celta iniciava o novo ano quarenta dias após o equinócio de setembro, isto é, na noite de 31 de outubro para o primeiro de novembro, com o Diabo a liderar atos criadores do caos para, em seguida, instituir a sua ordem; a festa da Cabra e do Canhoto de Cidões (Vinhais) e outras idênticas celebrações de comunidades residentes na área do Parque Natural de Montesinho são resquícios da cultura celta. Por outro lado, atribuía este povo grande simbolismo aos solstícios. Neste contexto, prestava culto ao Sol, como sinal de vida e de fecundidade para a Natureza.
Também os romanos celebravam profusamente o ciclo invernal: as Saturnais, desde 17 de dezembro, dedicadas a Saturno, o divino agricultor, o deus da abundância, e as Juvenalia, a 24 de dezembro, festas licenciosas protagonizadas pelos jovens. De alguma maneira e salvaguardando as alterações provocadas pelo decurso dos séculos, serão as atuais festas dos rapazes, os diabólicos caretos; festas cristianizadas com o aval de Santo Estêvão, o patrono dos jovens.
Podemos enquadrar as festas do Ano Novo e dos Reis, integrando o mesmo ciclo festivo (o dos doze dias), nas festas romanas das Calendas de Janeiro. São celebrações agrárias, as Bacanais, em honra de Baco, deus do vinho que, igualmente, presidia à plantação e à frutificação. São Martinho de Braga condenou-as por serem obra do Diabo. Também nelas aparecem os mascarados a liderar os seus rituais.
Todo o protagonismo dos atuais festejos de inverno pertence aos jovens; talvez porque os ritos de passagem estejam na génese deste contexto festivo. Antropólogos de nomeada falam nestes costumes populares como ritos iniciáticos pré-cristãos, perdidos em quase todas as regiões da Europa, que não no Nordeste transmontano. Entre estes costumes populares, de cariz um tanto misterioso, é preciso classificar em primeiro lugar as mascaradas e as cerimónias dramáticas que acompanham as festas cristãs de inverno. Nelas, os mascarados são tidos como a personificação do Diabo, sendo-lhe vedada a entrada nos locais sagrados cristãos.
Ritos de fertilidade
As festividades agrárias contêm naturalmente ritos de fertilidade que ainda hoje podemos constatar. Para atestar esta hipótese contribuem os adereços de várias personagens que ostentam ícones relacionados com o antigo culto da fertilidade: as máscaras zoomórficas (com elementos considerados diabólicos); o ato de “chocalhar” as mulheres executado pelos mascarados “daimónicos”, como se pretendessem fecundá-las; o princípio iniciático das festas dos rapazes que se mascaram e executam ritos de passagem da adolescência à idade adulta, o que lhes permite o acesso à sexualidade; os atos representativos da vida da comunidade; a recolha dos produtos da terra para as refeições comunitárias e outros tantos elementos que, com uma forte probabilidade, nos remetem para uma substancial presença da cultura pagã, que nem a passagem do tempo nem as orientações eclesiásticas eliminaram. Permanecem vigentes no distrito de Bragança e na província de Zamora.
Na festa da Mocidade de Constantim, o “Carocho” e pela “Bielha” formam um “casal” e representam cenas amorosas, incluindo o ato reprodutor, durante o percurso do peditório (convite) por todas as casas da povoação. Em cada uma, os mascarados saúdam os moradores e recebem donativos, produtos da terra, enquanto os pauliteiros dançam um laço, de saudação aos vizinhos daquela casa.
O Chocalheiro de Bemposta é o Diabo, no entendimento do povo; no entanto, executa o ritual do peditório no dia de Santo Estêvão (ainda no âmbito da quadra solsticial do inverno). A máscara e os restantes adereços do mascarado possuem uma carga simbólica condizente: os chifres exibindo, nas pontas, duas laranjas; barbicha de bode no queixo; pendendo da nuca, uma bexiga de porco inflada de ar; na testa, uma laranja em baixo relevo; num dos lados da face, uma serpente e no outro, uma salamandra; todo o seu corpo é envolvido por uma outra serpente, de grande porte. Embora o povo lhe atribua um carácter diabólico (e, portanto, paganizante), estes elementos remetem-nos para a simbologia da Terra-Mãe, ou seja, para as funções originais desta personagem.
Os protagonistas da festa do Natal ou dos Velhos de Bruçó são dois pares de mascarados. O “casal dos Velhos” tem como função zelar para que o ritual do peditório seja executado com o máximo rigor e segundo a ordem por eles imposta. O segundo é formado pela “Sécia” e o Soldado. A “Sécia” representa uma personagem de uma mulher de vida fácil; vai muito bem pintada no rosto e nos lábios e leva um “filho” (boneco) ao colo. O “casal” vai encenando toda uma farsa de jogos amorosos. Dirigem palavras carinhosas e brejeirices um ao outro e simulam beijos… Os mais jovens e atrevidos metem-se com ela, dirigem-lhe piropos e levantam-lhe as saias. Atos simbólicos de apelo à fertilidade, um ritual que vem paganismo e que ainda hoje se celebra. Existiu nesta celebração, há mais de um século, a personagem do Chocalheiro que, dada a sua condição diabólica, acabou por ser abolida. Acabou por ser recuperada há um par de anos, integrando agora o ritual do peditório.
Valverde, no município de Mogadouro, recuperou também o seu Chocalheiro, aqui designado de Careto; forma um casal com a sua companheira – a Velha – e executam um ritual semelhante ao dos seus homólogos e vizinhos, no mesmo dia de Natal.
A profilaxia
As funções purificadoras e profilácticas dos caretos manifestam-se, sobretudo, na crítica social. É isso o que acontece nas festas dos rapazes. Neste contexto, o papel do mascarado é o de profeta que levanta a voz perante o povo e aponta o dedo àqueles que, pelos seus atos, se desviaram das normas instituídas – a anomia. Para o povo, são diabos à solta. O solstício de inverno é um momento crítico no ciclo agrário; por isso, é a altura propícia para a purificação da comunidade.
A crítica social constitui o momento mais marcante das festas dos rapazes. Por isso, o ritual é de assistência obrigatória, como um qualquer preceito religioso. É assim nas aldeias da Baixa Lombada, Varge, Aveleda e Baçal.
Num dos largos da aldeia, desenrola-se o ritual, (as loas, comédias ou colóquios, designação que varia de terra para terra). Os caretos relatam, então, em verso, alguns factos ocorridos durante o ano, cujos intervenientes são criticados e ridicularizados, apontando os seus autores. Uma espécie de confissão pública levada a cabo por um qualquer celebrante mascarado. No final de cada quadra, a turba de caretos aplaude ruidosamente com gritos, que fazem lembrar animais o uivar dos lobos, e saltos que fazem soar chocalhos e campainhas que trazem presos à cintura. Em Varge, alguns destes factos são representados, numa espécie de teatro de rua. É a representação dos atos fundamentais da vida da comunidade.
A luta dos opostos
Outra faceta a considerar nas rituais funções dos mascarados é a luta dos opostos. São personagens que encenam um confronto, sendo uns conotados com o bem e outros com o mal. Em nome da boa marcha da comunidade, simbolizada no triunfo da personagem benéfica, o bem há de sair sempre vencedor; caso contrário, o ritual seria em vão; na verdade, só faz sentido quando celebrado em benefício da comunidade. Desta forma se expulsam os males, pelo período de um ciclo anual porque, tal como a hidra de sete cabeças, há de voltar; novo ritual haverá que cumprir para o vencer e assim se fundamenta a tradição; assim se garante o bem-estar social.
O Farandulo de Tó, personagem demoníaca, entra em luta constante com o Moço, um jovem corajoso, pela posse da Sécia, personagem feminina e frágil. À medida que o peditório se desenrola e avança pelas ruas da aldeia, os atores vão encenando a luta. Inesperadamente, o Farandulo interrompe o peditório para fazer uma investida traiçoeira sobre a Sécia, procurando roubar-lhe o ramo. Os seus intentos são logo contrariados pelo Moço, sempre atento aos seus movimentos, interpondo-se para defender a sua dama. É recorrente o uso da força, com o auxílio de um cajado que ambos ostentam. Numa festividade agrária e num momento de transição, toda a ação simbólica se orienta para a expulsão do mal e para o triunfo do bem. O contrário não faria qualquer sentido.
Em Torre de Dona Chama, o Santo Estêvão é celebrado de uma forma muito peculiar; aqui se trava a histórica luta entre cristãos e mouros. A “batalha”, designada “correr a mourisca”, é o último dos rituais da festa. Os dois grupos de contendores entram em ação: do lado dos “cristãos” colocam-se os caçadores, com armas e tudo; em oposição, do lado dos “mouros”, os caretos e as mouriscas. A tradição determina que a batalha só deve terminar quando atingirem o castelo do “rei mouro” (estrutura construída em cartão e madeira) colocado na outra extremidade do largo de todas as manobras bélicas. Ao fim de algum tempo, os cristãos arremetem contra o castelo, disparando os últimos tiros e ateiam-lhe fogo. Confraterniza-se dentro e fora do campo. Ritual pagão cristianizado com a passagem do tempo e reforçado pela luta entre cristãos e mouros, provavelmente de origem medieval.
O Carnaval
Em Podence celebra-se um dos carnavais (aqui designado de entrudo) mais reconhecidos em Portugal pela sua autenticidade. Os protagonistas são os rapazes que, pelo poder da máscara, dos trajes e adereços, se metamorfoseiam em caretos.
São largas dezenas de diabólicos caretos que deambulam pelas ruas, durante o Domingo e Terça-feira de Carnaval. Usam um volumoso molho de chocalhos à cinta para com eles “chocalhar” as mulheres (sobretudo as mais jovens), isto é, golpeá-las com uma boa dose de sensualidade que a atenuada violência encobre. Encostando-se a elas, executam uma dança tão ousada quanto ágil, fazendo girar a cintura e fazendo embater os chocalhos contra as ancas das vítimas. Este gesto erótico representava outrora a pretensa fecundação das mulheres em idade fértil. Hoje, apenas para cumprir a tradição.
Em Vinhais, o Carnaval prolonga-se pela Quarta-feira de Cinzas: uma multidão de diabos, acolitando a Morte, invade as ruas da vila. Atuando em grupos, com a Morte no papel de celebrante dos rituais, os diabos vão atacando em todas as frentes, chicoteando as moças, o seu alvo preferido, que procuram refugiar-se onde podem. Eles perseguem-nas onde quer que estejam. Logrando “caçá-las”, sob as pancadas dos seus chicotes, levam-nas “à pedra”, isto é, ao local de penitência – o largo central ou o pelourinho, na zona histórica da vila. Aqui, perante a sacerdotisa Morte e, rodeadas por numerosa turba de diabos, são obrigadas a rezar uma oração-chalaça e a beijar a gadanha.
A origem destas práticas está radicada por alguns na religiosidade popular medieval e, portanto, cristã. A atuação da Morte faz todo o sentido ao alertar os fiéis para que estejam preparados porque, na hora menos pensada, ela chega para lhes ceifar a vida com a sua tenebrosa alfaia. Talvez por isso, a personagem da Morte, até aos princípios de século XX, participava em Bragança na liturgia da missa e da procissão da Quarta-feira de Cinzas; o facto denota uma origem medieval desta tradição. As personagens do Diabo e da Censura juntaram-se à Morte, em finais do século XIX, mas apenas nas suas aterradoras e licenciosas deambulações pelas ruas; a participação nas cerimónias religiosas estava reservada exclusivamente à personagem sagrada da Morte.
Outros investigadores, porém, valorizam a origem pagã destes rituais. Segundo o Abade de Baçal, “este costume relaciona-se com a liturgia mítica de expulsar o Inverno representado pela morte”. As atitudes castigadoras para com as mulheres que os diabos tomam estarão associadas às Festas Lupercais celebradas pelos sacerdotes de Pan, em meados de fevereiro; cobrindo apenas as partes genitais com uma pele de cabra, percorriam as ruas, batendo com um chicote nas mulheres; a simbologia do ritual das chicotadas relaciona-se com a fecundação das mulheres.
Concluindo, as festas dos mascarados, normalmente conotados com os diabos, no Nordeste Transmontano são ritos de profundo esoterismo; resistiram à passagem do tempo e às mudanças históricas e sociais, conservando-se bem vigentes na cultura dos povos que os mantêm como seu património valioso e, por isso, constituem uma marca identitária da região.